swordswing. amplificar os autores da lusofonia. Spoken-word? Palavras a gingar… Música. Palavras. Canções?
swordswing. jazz, rock, electrónica, pop, house, Berio, Hendrix…em síncopes de palavras, caídas no destino da cadência…
swordswing. ritmo e poesia. Palavras de Herberto Helder, José Craverinha, Luiza Neto Jorge, Miguel Torga, António Cícero, Álvaro de Campos, Mutxhini Ngwenya. anónimos…
João Pedro Costa @ voz, efeitos
Dora Fidalgo @ voz, percussão, palavras
António Lopes Gonçalves @ composição, guitarra, programação
Miguel Costa @ baixo, voz
Luís Figueiras @teclas
Roberto Suárez @ bateria, percussão, electrónica
Tiago Jónatas @ theremin
Sanna Nyyssölä @ saxofone, voz
Fotografias Carlos Gonçalves; Fotografias ao Vivo André Correia
Texto encontrado numa agenda da editora Assírio e Alvim
Como será o corpo de Deus?
Sempre terá barbas?
E porquê brancas?
E o timbre poderoso da sua voz?
Se ele pronunciasse o meu nome // será que este corresponderia a minha imagem?
Será verdade que Deus tem // a conta exacta da totalidade dos meus cabelos?
Como serão os dedos de Deus?
Terão anéis como S. Pedro?
Terá altura?
Poderei falar em Deus sem o ofender?
Existirá o inferno?
E a quem enviará Deus cuidar das chamas do inferno?
Que pensará Deus destas perguntas
Que pensara Deus destas perguntas
E quando Deus tem sede
Pede aos anjos que lhe tragam de beber
Faz aparecer água?
Sacia-se com um gesto?
Bebe o seu próprio sangue?
Pronuncia a palavra bebida… e a sede desaparece,
O corpo de Deus… como será ele?
Branco... preto... amarelo... azul...
Terá lábios? Unhas? Terá o aspecto de uma águia real?
Terá simultaneamente todas as formas... coisas... animais... e seres do mundo
Não estará ele aborrecido da companhia...
Não estará ele aborrecido da companhia de tantos santos /
Tão bem comportados... // e há milénios sem nada que fazer à sua volta…
Saberão ao menos jogar às cartas?
Pensarão em mim… ou em ti?
Será que Deus já sabe do telemóvel... e se sabe... que pensará ele disto tudo?
Poderei falar em Deus sem o ofender?
O corpo de Deus como será ele?
Branco? karma! preto? hossana! amarelo? inchálá! azul? tandêbar!
Branco? karma! preto? hossana! amarelo? inchálá! azul? tandêbar!
Vasco Graça Moura/E. M. de Melo e Castro
Blues da Morte e do Amor/Tempo dos tempo (excerto)
já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali,
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: - morrer ou não morrer, darling, ah, sim.
Se nos tempos houvesse Jazz
o ritmo renovado do Jazz
o ritmo sincopado do Jazz
o ritmo sanguíneo do Jazz.
Dora Fidalgo/Sophia MB Andresen
Sempre que a noite vem...
Escureço.
Sempre que o dia vai...
Anoiteço.
A lua cresce e mingua em mim
Eu subo e desço com as marés
Porquê Eu?
Eu brilho e ardo com o sol
Floresço quando a Primavera vem
Eu nevo e há Inverno em mim
Porquê Eu?
Serei a nuvem que passou
Ou a gota de água que não ficou
Sempre que a sorte vem..
Recomeço.
Sempre que o amor vai...
Arrefeço
Em cada olhar procuro a minha dor
Um sorriso apenas p’ra me encontrar
Porquê Eu?
Serei a nuvem que passou
Ou a gota de água que não ficou
E choro e não é só por mim
Mas porquê Eu?
E Eu pergunto ao teu dia e à tua noite
Como há-de ser!
Se nunca mudas com a estação
Será que um dia vais me entender!?
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Herberto Helder
Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol.
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.
Era a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.
Descobri que tinha asas como uma pêra
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa.
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue - peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.
Cidade que aperto, batendo as asas - ela
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor:
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.
Mutxhini Ngwenya
Double Trouble
Quiz vestir esta lua,
Meu fato mais bonito,
Engomado e arejado,
Flor vermelha na lapela,
Guitarra acesa na mão,
Minha arma de trova.
Quiz brindar as estrelas,
Fazer oferendas á lua,
Dançar uma valsa,
Beber teus pomos,
Enxugar minha jornada,
Arrasar a praça,
Teu abraço me vestindo.
Quiz minha parra de barro,
Quebrá-la e branquear minha alma,
Lavá-la na enxurrada de beijos,
Saltar, e, atirar para ontem,
Rosas ressequidas de espera,
Lançar sementes estrelas.
Quiz tantas, tantas vezes
Fazer poema fresco,
Dizer às gaivotas e ao vento
Que em suas asas levassem,
Notícias flores ao mundo,
Mas,
Minha alma parra,
Nção sabe ainda
A cor de tua alegria...
Álvaro de Campos
LISBON REVISITED
NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Miguel Torga
Confiança/S. Leonardo da Galafura
O que é bonito neste mundo e anima
É ver que na vindima de cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura
E a doçura que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
Muito mais nova
Se transfigura numa doçura muito mais pura
Muito mais nova
O que é bonito neste mundo e anima
É ver que na vindima de cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura
E a docura que se não prova
Se transfigura numa doçura
Muito mais pura
Muito mais nova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
Muito mais nova
Navegar no doce mar de mosto
Da eternidade, sem pressa de chegar
Se transfigura numa doçura muito mais pura
Muito mais nova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais nova muito mais pura
Se transfigura
Brecht/Niemöller/Maiakovsky
Bertold Brecht
Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso… Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis… Mas não me importei com isso… Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados… Mas como tenho meu emprego… Também não me importei com isso
Agora estão a levar-me a mim
Mas já é tarde… Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
Martin Niemöller, 1933
Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu,
não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista,
não me incomodei .
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico,
não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar..."
Maiakovsky
Na primeira noite eles aproximam-se… e colhem uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite já não se escondem… pisam as flores, matam nosso cão… e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles… entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
Antonio Cícero
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance de um poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Dora Fidalgo
Vou dançar com o Sol ou a Lua cheia
De corpo nu beijando a brisa do mar
Vou partir sem medo, chamar o desejo
Mover o mundo, abraçar-te a sorrir
Por aí sempre solta de pé descalço
Descobrindo a magia do teu olhar
Mergulhar numa onda de paixão
Deixo a corrente segurar a minha mão
Por aí sempre solta de pé descalço
Descobrindo a magia do teu olhar
Se me deixarem vou por ai eu vou
Levo comigo o mundo
Se me deixarem vou por aí eu vou
Levo comigo o que a vida me ensinou
Vou voar bem alto sentir o aroma
que me abraça e vem para me embalar
vou seguir o véu da imaginação
olhar o céu e deixar-me seduzir
por aí sempre solta de pé descalço
descobrindo a magia do teu olhar
Se me deixarem vou por ai eu vou
Levo comigo o mundo
Se me deixarem vou por aí eu vou
Levo o que a vida me ensinou
Se me deixarem vou por aí
Levo comigo o que a vida me ensinou
Se me deixarem vou por aí eu vou, eu vou
E levo o que a vida me ensinou
Anónimo
Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador. Um substantivo masculino, com aspecto plural e alguns anos bem vividos pelas preposições da vida.
O artigo, era bem definido, feminino, singular. Era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal. Era ingénua, silábica, um pouco átona, um pouco ao contrário dele, que era um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanático por leituras e filmes ortográficos.
O substantivo ate gostou daquela situação; os dois, sozinhos, naquele lugar sem ninguem a ver nem ouvir. E sem perder a oportunidade, começou a insinuar-se, a perguntar, a conversar. O artigo feminino deixou as reticencias de lado e permitiu-lhe esse pequeno índice.De repente, o elevador para, só com os dois la dentro. Óptimo, pensou o substantivo; mais um bom motivo para provocar alguns sinónimos.
Pouco tempo depois, ja estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeçou a movimentar-se. Só que em vez de descer, sobe e para exactamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela no seu aposento. Ligou o fonema e ficaram alguns instantes em silencio, ouvindo uma fonética clássica, suave e relaxante. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela. Ficaram a conversar, sentados num vocativo, quando ele recomeçou a insinuar-se. Ela foi deixando, ele foi usando o seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo.
Todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo directo. Começaram a aproximar-se, ela tremendo de vocabulário e ele sentindo o seu ditongo crescente. Abraçaram-se, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples, passaria entre os dois.
Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era virgula. Ele não perdeu o ritmo e sugeriu-lhe que ela lhe soletrasse no seu apóstrofo. E claro que ela se deixou levar por essas palavras, pois estava totalmente oxitona as vontades dele e foram para o comum de dois géneros. Ela, totalmente voz passiva. Ele, completamente voz activa. Entre beijos, carícias, parónimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais. Ficaram uns minutos nessa proclise e ele, com todo o seu predicativo do objecto, tomava a iniciativa.
Estavam assim, na posição de primeira e segunda pessoas do singular. Ela era um perfeito agente da passiva, ele todo paroxitono, sentindo o pronome do seu grande travessão forcando aquele hifen ainda singular. Nisto a porta abriu-se repentinamente. Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo e entrou logo a dar conjunções e adjectivos aos dois, os quais se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas. Mas, ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tónica, ou melhor, subtonica, o verbo auxiliar logo diminuiu os seus advérbios e declarou a sua vontade de se tornar particípio na historia. Os dois olharam-se e viram que isso era preferível, a uma metáfora por todo o edifício
Que loucura, meu Deus. Aquilo não era nem comparativo. Era um superlativo absoluto. Foi-se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado aos seus objectos. Foi-se chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo e propondo claramente uma mesóclise-a-trois. So que, as condições eram estas. Enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria no gerúndio do substantivo e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.
O substantivo, vendo que poderia transformar-se num artigo indefinido depois dessa situação e pensando no seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na historia. Agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, atirou-o pela janela e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel a língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.